Jazz de outra dimensão

26.10.2019

Faz sentido que um gênero musical tão livre ultrapasse os limites mundanos para encontrar inspiração em outras dimensões. Os temas são recorrentes: espiritualidade, viagens espaciais, alienígenas, galáxias distantes e cenários futuristas. Aqui a música é ponte para outras realidades.

Direto de Saturno: Sun Ra Arkestra

Para começar o guia interplanetário do Sesc Jazz, nada melhor que um grupo fundado por um autodeclarado extraterrestre. Considerado um dos artistas mais inovadores na história do jazz, Sun Ra (1914-1993) – cujo nome artístico faz referência ao deus egípcio do Sol – foi pioneiro no uso de teclados sintetizadores e outros equipamentos eletrônicos, alguns dos quais ele mesmo alterava para produzir sons únicos durante os shows, marcados por longas sessões de improviso e percussão. Antecipou o psicodelismo e traçou as coordenadas para o afrofuturismo, movimento cultural e artístico que, desde os anos 50, mistura s tradição ancestral dos povos africanos a temas futuristas e de ficção científica. Até o cinema foi veículo para suas visões fantásticas: nos anos 70, Sun Ra levou o blaxploitation – movimento cinematográfico de protagonismo negro – para uma viagem pelo espaço sideral no filme “Space is the Place” (1974), uma ficção cósmica com trilha sonora singular.

Sun Ra diz ter deixado a Terra para retornar a Saturno em 1993, mas a leal Arkestra – fusão das palavras “orquestra“ e “arca”, referência à Arca da Aliança bíblica – segue levando sua palavra adiante. Atualmente liderada pelo saxofonista Marshall Allen, braço direito de Sun Ra desde 1958, a banda sustenta o espírito inovador e excêntrico. A “arca” tem um integrante brasileiro, o percussionista paulistano Elson Nascimento, convidado por Sun Ra em 1988. Presenciar uma apresentação da Arkestra, com seus figurinos e cenários excêntricos inspirados pela cultura egípcia e exploração espacial, continua a ser uma experiência mística.

Contatos imediatos musicais: o saxofonista entre as estrelas

Gary Bartz tem uma discografia que se espalha por seis décadas e coleciona peças-chave na história do jazz. Em “Harlem Bush Music” (1970-1971), disco duplo gravado com a banda Ntu Troop, o músico norte-americano declara seu interesse por assuntos cósmicos em faixas como “Celestial Blues” e “The Planets”. Mas o saxofonista já sintonizava atividades extraterrestres em seu segundo álbum de estúdio, “Another Earth” (1969) – faixas como “UFO” e “Lost in the Stars” têm uma sonoridade espacial, solene, como se integrassem trilhas sonoras de uma aventura interplanetária.

Mas os fenômenos sobrenaturais não são apenas inspirações musicais: em distintas ocasiões, Bartz relata repetidos contatos com objetos voadores não identificados. Em 1963, avistou um objeto brilhante, parecido com uma estrela, que se movimentava rapidamente no céu formando um 8. A experiência o levou a comprar um telescópio. Naquela época ainda não havia muita tecnologia de exporação espacial, a não ser o satélite Sputnik, lançado pela União Soviética em 1957.
“Há muitas estrelas no céu para estarmos sozinhos no universo. Isso seria muito egocêntrico da nossa parte. Os sufistas acreditam que o universo foi criado pelo Big Bang – explosão gerada por uma nota que ressoou em uma frequência específica. Ou seja, música! Nós só existimos por causa da música!”

“As pessoas dizem: ‘Eu sou de Nova York’. Eu digo: ‘Eu sou da Terra’” afirma o músico norte-americano, que nasceu em Baltimore e depois mudou para Nova York. Entre os terráqueos, Gary sempre esteve ao lado dos grandes. Estudou no tradicional Conservatório de Música de Juilliard, em Nova York, e integrou o projeto Jazz Workshop, do consagrado compositor Charles Mingus, nos anos 60, quando tocou ao lado de grandes nomes do jazz, como a cantora Abbey Lincoln, os bateristas Max Roach e Art Blakey, aos quais ele atribui grande parte do seu aprendizado como músico. Bartz trabalhou junto a artistas que despontavam na época, como a cantora Chaka Khan. Em 1970, foi contratado por Miles Davis, que se tornou uma espécie de mentor para ele – prova de que no espaço ou na Terra, o músico sempre esteve mirando estrelas.

Inspiração espacial: Ozma Quintet

Os franceses do Ozma Quintet se destacam no jazz contemporâneo europeu. O grupo une o jazz tradicional a elementos do hard rock, como riffs de guitarra, além de elementos da música eletrônica, com arranjos que muitas vezes se apoiam em repetições hipnóticas. Em 2011, ano de lançamento de “Peacemaker”, o jornal francês “Libération” comparou o trabalho do quinteto com a “excentricidade radiante do falecido [contrabaixista e compositor norte-americano] Charles Mingus”.

A excentricidade começa na escolha do nome: Ozma é o nome de um projeto que, nos anos 60, buscava por sinais de vida alienígena no espaço analisando ondas de rádio interestelares. A busca foi infrutífera, mas foi o passo inicial do SETI (Search for Extraterrestrial Intelligence), programa que existe até hoje em busca de sinais de inteligência em outros planetas.

“Ozma é um projeto da Nasa. A ideia era mandar sons e músicas para o universo e esperar a resposta. É uma ideia incrível. Então, pensamos, vamos fazer jazz para trazer os extraterrestres até nós” disse o baterista e compositor Stéphane Scharlé, apontando para o céu. Questionado se já teve experiências com alienígenas, ele sorriu e respondeu: “Sim, mas não posso falar sobre isso.”


Entrevistas e imagens: Carol Vidal e Marcel Verrumo. Edição do vídeo: Carol Vidal e Rachel Sciré. Edição da matéria: Aline de Castro, Carol VidalLivia Deodato e Julio Adamor.

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